Levante, de Lillah Halla, ganha sessão no Cinema na Rua e reacende debate sobre direitos

Levante, de Lillah Halla, ganha sessão no Cinema na Rua e reacende debate sobre direitos

Postado por Davi Augusto Ativar 20 set, 2025 Comentários (0)

Cinema na Rua leva "Levante" ao público e coloca corpo, esporte e política no mesmo quadro

O programa Cinema na Rua exibiu Levante (título internacional: Power Alley), estreia em longa-metragem da diretora Lillah Halla. A escolha não é casual: é um filme que conversa com a praça, com o cotidiano e com as fraturas do Brasil de hoje. Na tela, acompanhamos Sofia (Ayomi Domenica Dias), uma promessa do vôlei de 17 anos que descobre uma gravidez indesejada às vésperas de um campeonato que pode mudar sua vida. Em São Paulo, onde o aborto é criminalizado — salvo em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia —, ela tenta interromper a gestação de forma clandestina e vira alvo de grupos fundamentalistas.

O que o longa faz é deslocar a discussão do plano abstrato para a quadra: treino, estratégia, coletividade. A equipe de Sofia é diversa, com atletas trans e não bináries, e funciona como uma rede de proteção concreta. O filme não romantiza nada; mostra o medo, a ameaça e, ao mesmo tempo, o tipo de apoio que dá corpo à palavra solidariedade. É uma história sobre autonomia, mas também sobre amizade, cuidado e a pequena revolução de não deixar ninguém para trás.

“Levante” levou sete anos para ficar pronto. Halla decidiu construir o longa como quem monta um time: processo colaborativo, ensaios que integravam elenco e equipe técnica, decisões tomadas em conjunto. Essa dinâmica aparece em cena — nos deslocamentos coreografados, no jogo de olhares, na respiração coletiva antes do saque. A roteirista venezuelana María Elena Morán assina o roteiro ao lado de Halla, mantendo a tensão narrativa enquanto abre espaço para personagens que raramente ganham centralidade no cinema esportivo.

O reconhecimento veio cedo no circuito internacional. Em 2023, “Levante” estreou na Semana da Crítica do Festival de Cannes, disputou a Queer Palm e saiu com o Prêmio FIPRESCI, concedido pela Federação Internacional de Críticos de Cinema às obras que se destacam nas mostras paralelas. A recepção lá fora ajudou a empurrar o filme para outras vitrines e consolidou Halla como um novo nome a acompanhar no cinema brasileiro.

Temas espinhosos atravessam a narrativa, mas a abordagem é direta: quando o Estado e grupos organizados tentam controlar corpos, o resultado é violência. O filme retrata essas pressões com câmera próxima, muitas vezes colada ao rosto de Sofia, e som que amplifica passos, batidas de bola e sussurros — uma paisagem sonora que mistura quadra, rua e corredor de hospital. Visualmente, os planos enfatizam obstáculos: grades, portas entreabertas, filas. Nada é didático, mas tudo é legível.

Exibir essa história ao ar livre, num circuito que ocupa praças e ruas, muda o jogo. Cinema na Rua tem a ver com acesso — gente que não costuma ir a salas assiste de graça, em coletivo, e debate ali mesmo, na calçada. Esse formato, que cresceu no pós-pandemia com telões itinerantes e projeções em bairros periféricos, reforça o papel social da cultura: formar público, acolher diferenças e provocar conversa onde a vida acontece.

Há um contexto maior. Nos últimos anos, o Brasil viu crescer a pressão de grupos conservadores sobre direitos reprodutivos, com episódios de perseguição e desinformação. “Levante” reage a esse ambiente. O roteiro faz um diagnóstico do clima que ganhou fôlego durante o governo Bolsonaro, quando pautas morais tomaram o debate público e redes de ódio ganharam visibilidade. Ao mesmo tempo, o filme evita panfleto: prefere mostrar relações de afeto e estratégias de cuidado que sustentam quem está na linha de frente.

O universo do vôlei é mais do que cenário. O trabalho de corpo — bloqueio, cobertura, confiança no passe — vira linguagem. Halla transforma jogadas em dramaturgia: o time aprende a se mover junto, erra, corrige, protege. Quando a violência bate à porta, o aprendizado da quadra vira tática de sobrevivência. É também por isso que a presença de atletas trans e não bináries importa: não como cota, mas como parte orgânica do grupo, desmontando a ideia de que esportes e diversidade não combinam.

Para o público, a sessão tem dupla camada: a experiência coletiva de ver um filme forte sob o céu aberto e a chance de se reconhecer em personagens que raramente ocupam o centro. Ayomi Domenica Dias conduz o arco de Sofia com contenção e explosões no momento certo, sem melodrama. O elenco de apoio sustenta a vibração do time e dá humor em cenas que aliviam a tensão, sem desarmar o tema central.

“Levante” já circula por festivais e mostras e deve seguir em exibições especiais e circuitos alternativos, enquanto avança no lançamento comercial. Para quem acompanha a renovação do cinema brasileiro, é sinal de fôlego: narrativa social sem perder de vista a invenção formal, olhar para o presente e pontaria em temas que realmente mexem com a vida das pessoas.

Por que essa sessão importa agora

Por que essa sessão importa agora

Colocar “Levante” numa praça é uma decisão política e cultural. Fala com adolescentes que sonham com uma carreira esportiva, com mães que sabem o peso da burocracia e com quem se sente fora de lugar nas regras do jogo. Fala também com quem ainda acha que o debate sobre direitos reprodutivos é só tese: aqui, ele tem nome, rosto e consequência.

Se a missão do Cinema na Rua é democratizar acesso, esta sessão cumpre a promessa. Abre espaço para conversa difícil sem medo e mostra que cinema brasileiro recente tem lastro para disputar atenção com qualquer produção internacional. Não por barulho, mas por precisão: um roteiro enxuto, uma direção segura e um elenco que joga junto.