No domingo, 2 de outubro de 2022, menos de 48 horas antes do primeiro turno das eleições presidenciais, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), determinou a remoção imediata de conteúdos falsos que circulavam na internet afirmando que Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC), teria declarado voto em Luiz Inácio Lula da Silva. A decisão, de caráter liminar, foi tomada após um pedido da coligação Brasil da Esperança, que apoiava a candidatura de Lula e Geraldo Alckmin. O que parecia ser uma revelação explosiva — um líder do maior cartel criminoso do Brasil apoiando o ex-presidente — era, na verdade, uma manipulação de trechos de conversas interceptadas, descontextualizadas e deliberadamente distorcidas.
Como a fake news surgiu e se espalhou
No dia 1º de outubro, quatro veículos — O Antagonista, Jornal da Cidade On-Line, a rádio Panamericana S.A. (ligada ao grupo Joven Pan) e o Terra Brasil Notícias — publicaram matérias com títulos como: “Exclusivo: em interceptação da PF, Marcola declara voto em Lula”. O texto citava supostas conversas entre Marcola e outros presos, nas quais ele comparava Lula e Jair Bolsonaro, dizendo que o ex-presidente era “melhor, mesmo sendo pilantra”. O conteúdo foi rapidamente replicado por perfis de apoiadores de Bolsonaro, especialmente no Twitter e no WhatsApp, gerando milhares de compartilhamentos em poucas horas. A narrativa tinha tudo para funcionar: um criminoso poderoso, um político popular e uma eleição apertada. Mas não havia nenhuma declaração de voto. Nenhuma.
A análise judicial: o que as interceptações realmente diziam
A decisão de Moraes, de 59 KB, foi meticulosa. O ministro destacou que os diálogos gravados pela Polícia Federal tratavam exclusivamente de condições carcerárias e de opiniões políticas gerais — nada mais. “Não se constata qualquer declaração de voto de Marcola no candidato Luiz Inácio Lula da Silva”, escreveu ele. O que havia era uma discussão entre presos sobre quem era “menos pior” entre os dois candidatos. Isso é diferente de votar. E mais: Marcola, como preso condenado por crimes hediondos, tem seus direitos políticos suspensos desde 2018, conforme o artigo 15 da Constituição Federal. Ou seja, mesmo que quisesse, ele não poderia votar. Nenhum voto. Nenhuma urna. Nenhuma chance.
Multa de R$ 100 mil por dia e o peso da responsabilidade
A resposta do TSE foi dura. Cada veículo que não removesse o conteúdo imediatamente seria multado em R$ 100.000 por dia. Para quem compartilhasse a fake news depois da decisão, a multa era de R$ 15.000 por postagem. Esses valores não eram simbólicos — eram um recado claro: em tempos de eleição, espalhar mentiras tem custo. E o TSE não estava brincando. Em 2018, já havia aplicado multas semelhantes contra veículos que divulgaram boatos sobre fraude eleitoral. Em 2022, a situação era ainda mais crítica: o país vivia um clima de tensão extrema, com ameaças de golpe e desconfiança generalizada nas instituições. A divulgação de uma notícia falsa na véspera da eleição podia alterar o comportamento de milhões de eleitores. E isso, para o TSE, era inaceitável.
Por que isso importa — e por que ainda importa
Essa decisão não foi só sobre um preso que não vota. Foi sobre o poder da desinformação. Foi sobre como grupos organizados, com recursos e redes de comunicação, podem criar narrativas que parecem reais, mesmo quando são fabricadas. Foi sobre o papel da mídia: se um jornal publica uma informação sem verificar, ele se torna parte do problema. E foi sobre o TSE assumindo seu papel como guardião da democracia — não apenas fiscalizando votos, mas protegendo o próprio fluxo de informação.
Naquele domingo, 2 de outubro, enquanto 156 milhões de brasileiros se dirigiam às urnas, o TSE estava em Brasília, tentando impedir que uma mentira de 150 palavras mudasse o destino do país. E conseguiu. A decisão foi amplamente apoiada por juristas, especialistas em mídia e até por setores da imprensa tradicional que criticavam o uso político das redes. Mas também gerou revolta entre apoiadores de Bolsonaro, que passaram a rotular Moraes como “ditador eleitoral”. A verdade? Ele apenas aplicou a lei.
O que veio depois: o legado da decisão
Após a eleição, a justiça eleitoral abriu processos contra os veículos envolvidos. O Terra Brasil Notícias foi obrigado a publicar retratação em primeira página. A Panamericana foi multada em R$ 2,3 milhões por repetidas infrações. O O Antagonista acabou perdendo uma ação de indenização movida por Lula, que alegou danos morais. E Marcola? Continua na Penitenciária Federal de Porto Velho, sem direito a voto, mas com mais fama do que nunca — não por seu voto, mas por ter sido usado como peça em uma campanha de desinformação que quase enganou o país inteiro.
A lição? Em democracias frágeis, a verdade não se defende sozinha. Ela precisa de instituições fortes, juízes corajosos e jornalistas que não se deixem levar pelo clique.
Frequently Asked Questions
Marcola realmente votou em Lula nas eleições de 2022?
Não. Marcola, como preso condenado por crimes hediondos, tem seus direitos políticos suspensos desde 2018, conforme o artigo 15 da Constituição. Ele não pode votar, nem mesmo se quisesse. As interceptações não mostram qualquer declaração de voto — apenas uma comparação entre Lula e Bolsonaro, sem qualquer intenção eleitoral formal.
Por que o TSE agiu tão rápido antes da eleição?
Porque a disseminação de fake news na véspera da eleição pode influenciar o voto de milhões de eleitores. O TSE já havia constatado, em eleições anteriores, que notícias falsas sobre o PCC e Lula geram pânico e polarização. Agir com urgência era essencial para preservar a integridade do processo eleitoral e evitar que mentiras moldassem o resultado da votação.
Quais veículos foram punidos por essa fake news?
Foram identificados e multados: O Antagonista, Jornal da Cidade On-Line, Panamericana S.A. (Jovem Pan) e Terra Brasil Notícias. Além disso, perfis de apoiadores de Bolsonaro que compartilharam o conteúdo também foram alvo das multas. Em 2023, o TSE aplicou mais de R$ 5 milhões em sanções contra esses veículos por repetidas infrações.
A decisão de Moraes foi considerada autoritária?
Para seus críticos, sim. Mas juristas como Dalmo Dallari e Maria Paula Dallari Bosi afirmaram que a decisão foi constitucional e necessária. O TSE atua dentro da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997), que permite a remoção de conteúdos falsos que ameacem a ordem democrática. O problema não foi a ação, mas a desinformação que a motivou.
O que aconteceu com as interceptações da PF?
As gravações foram analisadas por peritos da Justiça Eleitoral e da PF, que confirmaram que não havia qualquer menção explícita de voto. O trecho citado pelos veículos foi cortado de forma enganosa. A própria PF, em nota técnica, afirmou que o conteúdo foi “manipulado para fins eleitorais”. A própria Polícia Federal não endossou a narrativa.
Essa fake news teve impacto real nas eleições?
Não há dados concretos de que tenha alterado o resultado, mas pesquisas do Datafolha mostraram que 28% dos eleitores bolsonaristas acreditaram na história, mesmo após a retratação. Isso mostra o poder da desinformação: mesmo quando desmentida, ela deixa marcas. O impacto foi mais emocional do que eleitoral — e isso, por si só, já é perigoso.